Que se poderia esperar quando um Quentin Tarantino encena uma fantasia antissemita disfarçada pelo antinazismo de um fictício grupo de “soldados judeus americanos conhecidos como Os bastardos” dispostos a degolar soldados alemães, no filme intitulado de modo propositadamente errado Inglourious Basterds (2009)? Mais um hediondo filme revisionista invertendo papéis, mostrando os judeus como carniceiros sádicos e os nazistas como vítimas de terroristas. A Vanity Fair publicou stills do filme que “surgem com todo o glamour das produções antigas e dos astros de Hollywood” (Notícias da Rua Judaica, 19/04/2009), tornando a carniçaria que os cartazes não disfarçam mais palatável ao público fashion. Mas a imagem que ilustra a matéria mostra um judeu carniceiro escolhendo as armas mais afiadas para cometer seus escalpos, à maneira das tão vulgares caricaturas de “Fips” para o jornal nazista Der Stürmer:

Judeu como carniceiro de nazistas em "Inglourious Bastards".
Judeu como carniceiro de nazistas em Inglourious Bastards.
Judeus como carniceiros de anjos loiros no jornal nazista "Der Stürmer".
Judeus como carniceiros de anjos loiros em Der Stürmer.

Claro que, para efeito de bilheteria, os judeus do filme de Tarantino são mais bonitos, e é o galã Brad Pitt quem interpreta o tenente americano Aldo Raine que os organiza. Esse não é exatamente um “caçador de nazistas” como o feioso Simon Wiesenthal, mas um charmant torturador cujo objetivo não é tanto combater o nazismo quanto opor ao nazismo alemão um nazismo judeu capaz de apavorar até Adolf Hitler: “Membros do Partido Nacional-socialista conquistaram a Europa para assassinar, torturar, intimidar, e aterrorizar. E isso é exatamente o que nós vamos fazer a eles. Seremos cruéis com os alemães e através de nossa crueldade eles saberão quem somos nós. Eles encontrarão a evidência de nossa crueldade nos corpos destroçados, desmembrados, desfigurados de seus irmãos que deixaremos para trás e os alemães […] terão medo de nós. Nazistas não têm humanidade! Eles precisam ser destruídos. Cada um dos homens sob o meu comando deve-me cem escalpos nazistas… E eu quero os meus escalpos!” (trailer do filme).

Num mundo que assume descaradamente seu anti-semitismo comparando judeus a nazistas, não mais somente nas mídias islamitas, neo-stalinistas, neonazistas, mas até nas mídias liberais, esse novo blockbuster de Hollywood reforça para o grande público o conceito que hoje se espalha em meio aos conflitos no Oriente Médio, fazendo dos judeus não apenas os novos nazistas, mas os piores nazistas.

Bastardos inglórios é, pois, um filme detestável. Seu humor é sádico e grotesco; sua violência, vulgar e grosseira, caracteriza um típico pastelão de sangue; os diálogos são perfeitos para imbecis que se acham inteligentes sacando a “inteligência dos diálogos”. Um verdadeiro lixo. As referências ao cinema nazista podem parecer profundas para quem não conhece o cinema nazista, mas é fácil para quem o conhece perceber os buracos.

Georg Wilhelm Pabst, por exemplo, é citado com admiração, pois Tarantino só deve conhecer a fase alemã muda e a fase francesa dele, não a fase nazista (Komödianten, Paracelsus, Der Fall Molander). Assim, ele critica a Riefenstahl, mas preserva o Pabst, anunciado “sem necessidade” (como nota o jovem soldado Zoller) no cartaz de Pitz Palü, que não foi produzido na Alemanha nazista, mas na República de Weimar.

Claro, uma “Semana Alemã” em uma sala de cinema de Paris sob a Ocupação poderia estar exibindo uma reprise. Mas por que não algum filme nazista de Veit Harlan ou Hans Steinhoff? Ah, sim, a dona do cinema, Shosanna Dreyfus (Mélanie Laurent), é uma jovem judia camponesa escapada de um massacre graças ao estranho “au revoir” do supostamente impiedoso “caçador de judeus”; ela chegou caminhando, ou sabe Deus como, do interior da França até a Paris ocupada, onde herdou legalmente, sabe Deus como, um cinema em plena Ocupação; e, claro, cinéfila inveterada, ela mantém um arquivo de filmes, de onde sacou esse velho filme, embora deteste Riefenstahl, exibindo Pitz Palü apenas como uma homenagem a Pabst…

Ora, precisamente nessa altura Pabst estava trabalhando na Alemanha nazista (ele devolveu ao governo francês, dois meses antes da declaração de guerra, uma medalha da Legião de Honra que ganhara, e com a eclosão da guerra, em 1939, ele retornou à Áustria, de onde seguiu para a Alemanha para realizar filmes de propaganda nazista a convite de Goebbels, ajudando, inclusive, a Riefenstahl – que a jovem judia camponesa proprietária de cinema e cinéfila inveterada detesta – na direção de algumas cenas em que ela atuava em seu Tiefland

Em certa cena, uma canção cantada por Zarah Leander é ouvida ao fundo, mas o nome da maior diva nazista não é mencionado, apenas o da secundária Brigitte Fossey e da veterana Pola Negri (personagens no jogo de adivinha) e o de Lilian Harvey (inglesa que após trabalhar em alguns filmes nazistas imigrou para os EUA, onde não fez sucesso; o Goebbels de Tarantino fica furioso no cinema quando lembram o nome dela).

Já a estrela nazista Bridget von Hammersmark (Diane Kruger), que ajuda os Bastardos, parece vagamente inspirada em Olga Tchekova (que espionava para o NKVD, diretamente subordinada a Lavrentiy Beria, segundo a recente biografia escrita por Antony Beevor, que também revela o trabalho de espionagem para os soviéticos de Zarah Leander, subordinada a Zoia Ribkina) e em Renate Müller (que tinha um amante judeu na Inglaterra, para onde escapava às escondidas, e que acabou sendo “suicidada” pela Gestapo).

De qualquer forma, as referências ao cinema nazista são sempre vagas e imprecisas – como a súbita irrupção de um nada parecido Emil Jannings na seqüência da estréia de O orgulho da nação… Na crônica “Bastardos gloriosos” (Folha de S. Paulo, 13/10/2009), João Pereira Coutinho perguntou: “Vocês, caros leitores, estão habituados a filmes sobre o Holocausto onde os judeus são meros carneiros nas matanças nazistas? Filmes de um sentimentalismo vulgar […]? [Em Bastardos inglórios] os judeus, agora, não são apenas vítimas; também são vingadores […]”. Ou seja, os filmes que tentaram apreender a verdade sobre o Holocausto, como Ostatni etap; Ulica Graniczna; Daleká cesta; Professor Mamlock; A orquestra de Auschwitz; Shoah; As 200 crianças do Dr. Korczak; A lista de Schindler, O pianista, etc. são “de um sentimentalismo vulgar” porque neles os judeus são vítimas… Quando não o foram?

O cronista e seus leitores preferem a “inversão de estereótipos” do Cirque de Soleil sangrento de Tarantino. Não percebem que o cineasta, sem qualquer cultura (ou, antes, formado pela subcultura de filmes de Kung Fu e Blaxploitation, com algumas doses da Nazi-exploitation que inclui títulos como Ilsa, She Wolf of the SS; La bestia in calore, L’ultima orgia del III Reich e Quel maledetto treno blindato, intitulado The Inglorious Bastards nos EUA, e cujo diretor, Enzo Castellari, interpreta um pequeno papel no filme de Tarantino) cai nos estereótipos mais antigos sobre os judeus: a gangue dos Bastardos – assim como a esquizofrênica Shosanna Dreyfus (nome escolhido a dedo) – são movidos pelo ódio vingativo como o Shylock de O mercador de Veneza, de William Shakespeare; o Judeu errante, de Eugène Sue; ou o Samuel Mayer do romance mediúnico A vingança do judeu, do “espírito” J. W. Rochester, revelando-se tão carniceiros quanto os “judeus” das caricaturas de Der Stürmer

No revisionismo dos trapalhões escalpeladores de Tarantino, os principais dirigentes nazistas, incluindo Joseph Goebbels (Sylvester Groth) e Adolf Hitler (Martin Wuttke), são mortos pelos judeus Bastardos. Todos são representados por atores tão pouco parecidos quanto o grotesco Winston Churchill caracterizado por Rod Taylor, escondido como uma aranha num canto de seu sombrio gabinete. E os judeus ainda são aí homens-bombas terroristas e massacradores de nazistas “indefesos” (eles incendeiam um cinema lotado e queimam vivos uns 400 nazistas desarmados na platéia).

É incrível como a sensibilidade do público deteriorou-se, a ponto de tantos acharem inteligente, divertido, excitante ver judeus arrancando a faca o couro cabeludo dos corpos de nazistas – o escalpe “apache” que, em 1975, Pier Paolo Pasolini associou para sempre aos torturadores fascistas de Salò… Há uma tendência moderna que consiste em saciar o sadismo das massas fascistóides contra os “vilões”. Tarantino radicaliza essa tendência, fazendo com que seus vilões nazistas sofram “como judeus” nas mãos de judeus que agem como os nazistas: supostamente bons, esses “heróis” podem praticar todo tipo de atrocidade contra os tradicionais “vilões”: escalpelamento, cremação massiva, estouro de crânios, etc.

Notável, nesse sentido, que o personagem de Brad Pitt, o Kapo americano não-judeu que organiza os Bastardos, nunca suje suas mãos, a não ser para marcar os nazistas. Ele encarrega os judeus de todo o trabalho sujo, eles é que têm de esmigalhar crânios e arrancar escalpos, supostamente se vingando, como um bando de cães, lobos ou ursos amestrados a serviço de seu “dono”. O Kapo Aldo Raine reserva-se apenas o privilégio de enfiar o dedo na ferida da estrela que trai os nazistas e de rabiscar a facão suásticas nas testas dos nazistas que deixa escapulir. E aí está mais uma ambigüidade do filme, pois ao mesmo tempo em que o personagem afirma que essa escarificação tornará os nazistas “visíveis” mesmo ao se livrarem de seus uniformes, o fato é que a escarificação de suásticas nas testas das vítimas é uma conhecida prática de gangues neonazistas.

Em resumo, no filme de “clichês trocados” de Tarantino, os verdadeiros nazistas são os judeus… A alcunha que o Coronel Hans Landa (Christoph Waltz) recebe, de “caçador de judeus”, é uma “indireta” dirigida ao “caçador de nazistas” Simon Wiesentahl. Com exceção do assassinato da família Dreyfus no começo do filme (seqüência copiada de A lista de Schindler, de Steven Spielberg, e de A lenda do cavaleiro sem cabeça, de Tim Burton), são sempre os judeus que trucidam, bombardeiam, metralham, cremam vivos, “tatuam” os inimigos na carne e queimam bens culturais – o auto-de-fé nazista de livros é aí transformado num judaico auto-de-fé de filmes.

Em “Tarantino Touch” (Folha de S. Paulo, 18/10/2009), Jorge Coli chegou a comparar Bastardos inglórios à magistral e sofisticada comédia antinazista Ser ou não ser, de Ernst Lubitch, e o “discurso vingador” de Shosanna ao emocionante discurso final de O grande ditador, de Charles Chaplin, com desvantagem para esse último: o discurso de Tarantino “nada tem do tom didático [de Chaplin]… é uma esplêndida apoteose feita com o prazer de filmar para o prazer de assistir”. Quer dizer que o grosseiro pastiche de Tarantino evocaria o Lubitch Touch e superaria a obra-prima de Chaplin? Quanta baboseira!

Sintomático que o ato final de barbárie da “heroína” vingadora tenha sido interpretado por diversos críticos como uma prova do grande “amor” que Tarantino dedicaria ao cinema. Estranho amor, que se demonstra queimando todo um acervo de películas em nitrato e explodindo uma bela sala de cinema, atribuindo esse “holocausto” a uma judia e a um negro… E depois Tarantino tem o desplante de ir a Israel mostrar seu filme, talvez esperando que o “exército nazista do Estado Judeu” (na visão dos novos antissemitas) se “reconheça” nos seus personagens, aplaudindo Bastados inglórios como as platéias alheias à História que gargalham nos cinemas multiplex que fedem a mofo e pipoca amanteigada…

22 comentários sobre “REVISIONISMO BASTARDO EM TECNICOLOR

  1. Tendo em vista que a maioria dos espectadores “cult” de Tarantino não faz muita idéia do que foi a Segunda Guerra Mundial (não duvido que uma certa porcentagem até veja os nazistas alemães, o “lado derrotado”, com alguma simpatia velada ou aberta), muitos aplicarão o contexto do filme ao momento histórico atual: a “ocupação sionista da Palestina”. Pelo que pude ver do trailer – o “original” Tarantino desta vez pasticha filmes como Os doze condenados – a preocupação com veracidade e reconstrução histórica é mínima. Ver judeus torturadores de nazistas será um belo reforço – como o Luiz já detectou – desse antissemitismo que transforma Israel em matriz do Mal universal e todo judeu em “soldado sionista” em potencial. Assim, o resto de piedade que o mecanismo sádico – no espectador comum – não consegue sublimar será deslocado para uma construção ainda mais sólida da imagem atual do “judeu perigoso para a paz no mundo”. Perigoso por natureza – e, portanto, passível de extermínio.

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  2. Luiz, mais um brilhante ensaio de sua autoria. Cada vez me surpreendo mais com a sua originalidade, abrangência e contundência. Tenho apenas um comentário: nos meios psi é conhecida a máxima de que a única maneira de conter um psicopata é através do medo. Não há argumento, gesto ou truque capaz de impedi-lo de agir como bem entende. Lembro-me de um grande psicanalista, experiente, veterano, cultíssimo, extremamente respeitado me dizendo isso explicitamente durante uma supervisão. Lembro-me de um grande intelectual judeu, Pedro Geiger, humanista de carteirinha, dizendo no meio de uma discussão política: “Adoro ver filmes de guerra, porque em cada filme morrem alguns nazistas”. A idéia de que os judeus sabem controlar seus impulsos (“Quem é herói? Aquele que domina o seu impulso” – do Talmud) os torna totalmente diferentes de qualquer coisa que possa ser chamada de “nazismo”. No entanto, isto não significa que o “judeu” é um ser destituído de agressividade. A agressividade judaica esteve reprimida durante o Exílio, por motivos estratégicos (uma minoria muito pequena deve se comportar, porque se já não é tolerada quando nada faz de errado, imagine se fizer…), mas sabemos que antes de perderem a soberania, e mesmo durante a ocupação romana, não era um povo exatamente “bonzinho”. Era um povo em tudo igual aos outros, talvez com a diferença radical de que tinha uns sujeitos barbudos e mal encarados que saíam à rua berrando contra injustiças e iniquidades, era dado a produzir cidadãos nem sempre muito submissos às autoridades, e costumava escrever coisas que outros povos acabaram achando muito legais. O ideal da não retaliação foi inventado, pelo que sei, justamente pelos judeus. Mas não o ideal da não-agressividade. No mesmo lugar onde está escrito “Olho por olho, dente por dente”, limitando a desforra ao dano sofrido, também está escrito “Ao que acorda para te matar, madruga e mata-o”. A defesa agressiva é legitimada. O ataque destruidor é proibido. Por isso está escrito nos Dez Mandamentos “Não Assassinarás”, e não “Não Matarás”, como foi traduzido (um dos erros de tradução mais clamorosos e mais prenhes de consequências que conheço). Então, uma coisa é perpetrar barbaridades contra opositores “normais”. Outra, bem diferente, perpetrá-las contra opositores que, antes disso, ultrapassaram todos os limites conhecidos do comportamento que pode ser considerado humano, no sentido “próprio” do termo. Qualquer coisa que um ser humano faça é “humana”, em termos de categoria zoológica. Mas nem tudo é aceito automaticamente como “apropriado” ou “compreensível”. A natureza não nos dotou de limites “naturais”. Um ser humano, para sê-lo, deve ter sido criado de um modo bastante “humano” para tornar-se isso que chamamos de “humano”. Nesse sentido essa tendência é natural. Mas não é automática, instintiva, como nos outros animais. A Bíblia não prega o pacifismo. Prega a lucidez e a compaixão, que são as possibilidades mais caracteristicamente humanas que possuímos, mas não a aceitação passiva da agressividade alheia. Quando Jesus, judeu, disse “Se te baterem numa face, volta a outra para o agressor”, estava pregando uma estratégia de resistência, não exatamente um modo de vida. E quando se está diante de um opositor que não se deixará jamais aplacar por qualquer argumento aceitável (daí o termo ‘implacável’…), só uma agressividade maior que a dele permitirá ao instinto de sobrevivência fazer o seu trabalho. Voltamos, então, ao ponto de partida: Diante de um sociopata (o gêmeo social do psicopata), não há “política” nem “sabedoria”. Há apenas um modo de sobreviver: sendo mais forte que ele. Os nazistas eram nazistas porque todos agiam da mesma maneira, contra qualquer um que se colocasse em seu caminho. Os judeus nunca foram nazistas porque jamais agiram da mesma maneira contra qualquer um que os ameaçasse. Os soldados judeus do filme estão degolando nazistas, não alemães. Essa diferença é de importância fundamental. O que caracteriza o ideário nazista não é o modo de ação, mas a ideologia por trás dele. E essa ideologia os judeus jamais tiveram. Talvez, no caso do filme do Tarantino, seja necessário desancá-lo por não ter enfatizado essa diferença. A meu ver, porém, o que ele propõe no filme (ainda não o vi, e só depois poderei dizer algo mais específico) não é a equivalência entre judeus e nazistas, mas exatamente a idéia explicitada por aquele psicanalista acima citado. Quando o “grande público” chama de nazista o comportamento do exército de Israel frente aos palestinos, está agindo de maneira psicótica (a partir de uma metonímia, como dizia Lacan): “Você fez isso, você é aquilo”. O não psicótico age a partir da metáfora, não da metonímia: “Você fez isso, você está parecendo aquilo”. Claro que é sutileza demais para um “grande público”, mas é preciso cuidar dessas sutilezas, porque da soma delas é que é feito o todo.

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    1. Davy, Tarantino não está interessado em questões filosóficas. Quer apenas explorar o sadismo, usando a Ocupação como fundo, contrapondo seus Bastardos judeus aos nazistas para provar qual dos dois bandos é o mais cruel. O humanista judeu que adora filmes de guerra porque nele se matam nazistas (filmes de guerra americanos, porque, nos filmes de guerra nazistas, ingleses e russos é que são mortos) realiza uma fantasia heróica muito comum entre machos de todas as religiões. Soldados israelenses que matam terroristas palestinos defendem a segurança de Israel, a existência do Estado judeu. Mas aqui não se trata de realizar uma fantasia heróica nem de representar um conflito real: trata-se de estimular uma fantasia sádica. Inglourious Basterds não é um filme de guerra tradicional. É um filme de escalpo. Os Bastardos não combatem nazistas como o Exército Aliado ou a Resistência. Eles vão torturar nazistas pelo prazer de decepar e esmigalhar cabeças. Não se trata de uma violência defensiva de sobrevivência, mas de terrorismo com requintes de crueldade. A única justificativa é que essas cabeças pertencem a nazistas, e nazistas não são humanos. Na última entrevista de Clarice Lispector, ela recordou um texto dela sobre o bandido Mineirinho, “que morreu com treze balas quando uma só bastava… o primeiro tiro me espanta… o décimo-segundo tiro me atinge, o décimo-terceiro sou eu… eu me tornava Mineirinho, massacrado pela polícia… qualquer que tivesse sido o crime dele, uma bala só bastava… o resto era vontade de matar, era prepotência”. Podemos ver no filme de Tarantino um soldado alemão colocado de joelhos para ter a cabeça arrebentada com um taco de basebol. Eu sou esse soldado nazista ajoelhado, aquela cabeça esmigalhada é a minha. Tarantino explora o prazer sádico atribuindo esse sadismo de fundo fascista aos judeus, tornando os nazistas suas vítimas patéticas, e é isso o que faz de Inglourious Basterds um hediondo filme revisionista.

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  3. Pois é, Luiz, com o filme em cartaz (imenso sucesso nos EUA, sendo provavelmente o filme de maior lucro na carreira de Tarantino) fica mais claro o alcance da distorção histórica de Bastardos inglórios, bem como a deletéria influência exercida mesmo nos circuitos “intelectuais” de nosso país e do exterior. É trágico se não fosse cômico o fato de Tarantino utilizar o “mecanismo da vingança” (copiado de outro cineasta de violência fashion, Chan-Wook Park) para exercitar o sadismo próprio e das massas contra o vilão identificado, uma vez que, se não me engano, declarou diversas vezes na imprensa ter grande admiração por Leni Riefenstahl… Como Sam Peckinpah nos anos 1970, fez um filme com heróis nazistas, “mas”, dentro do baile de máscaras tarantinesco, diferentes no uniforme e na etnia.

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    1. Bem lembrado, Al. O sucesso atual da vingança me faz recordar o infame V de Vingança e sua apologia do terrorismo, outro filme que usou as mesmas técnicas de “estereótipos trocados” celebradas pelas mídias de consumo no filme de Tarantino, como na capa da revista Veja. Até o psicanalista Contardo Calligaris, no artigo “O prazer da vingança” (Folha de S. Paulo) considerou Bastardos inglórios “um dos melhores filmes de Tarantino […] uma verdadeira festa de vingança, uma fantasmagoria cuja violência é alegre e libertadora”. Ele também se deliciou com um filme sueco, Deixa ela entrar, de Tomas Alfredson, onde um garoto conta com uma amiga imaginária, uma vampira, que trucida os que o azucrinam, e conclui dizendo que adoraria ter uma amiga assim na infância, “que saísse das sombras e arrancasse os pescoços, as cabeças e os braços dos idiotas que me azucrinassem a vida”, uma amiga que ele adoraria ter “para se vingar”. E finaliza de modo sinistro e generalizador: “De uma amiga assim, todos precisamos”. Creio que essa mentalidade fascista profunda, latente nos ditos intelectuais progressistas, esquerdistas, antifascistas e libertários, explica o sucesso desses filmes.

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  4. Obrigada, Luiz Nazario, por essa excelente análise de um filme que achei simplesmente grotesco. No entanto, calei-me, pois todos que ouvi a respeito diziam tratar-se de “obra-prima”, inclusive pessoas da mídia que eu admirava como civilizados. Não consegui rir, não consegui me sentir vingada. E, diante de tantos elogios a essa descarada festa de sadismo e selvageria, tive vergonha da pena que senti dos nazistas. Obrigada, então, por redimir meus melhores sentimentos.

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  5. Uma excelente crítica, muito bem fundamentada. Realmente, é lamentável que essa apologia do sadismo tenha feito tanto sucesso, e sido tão elogiada pela crítica da grande imprensa.

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  6. A tese da “passividade” dos judeus na 2ª Guerra Mundial, invocada pelos apologistas de Tarantino para justificar sua vendetta de celulóide, foi muito bem contestada por Elie Wiesel, que lembra o fato óbvio de que na maioria dos casos os judeus não tinham meios nem apoio para reagir às violências que sofriam. Em uma pesquisa na internet encontrei menções a historiadores como Herman Langbein (sobrevivente do Holocausto) e outros, que relatam que os judeus realizaram variadas formas de resistência ativa ou espiritual aos nazistas (não apenas pela reação violenta, que é a única que conta para os fãs de Tarantino).

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    1. O autor desse texto diz que o filme de Tarantino não é para ser levado a sério, o que já por si só é bastante discutível. A maioria dos críticos que se encantou com a violência sádica de “bastardos inglórios” levou o filme muito a sério, como se pode ver pelas resenhas citadas no artigo de Nazário, de João Pereira Coutinho, Contardo Calligaris e Jorge Coli – este, certa vez, chegou a escrever que “HELL”, um filme violentíssimo de Jean Claude van Damme, era melhor que o brasileiro “Carandiru”, por ser “puro cinema” (?!). Provavelmente ninguém no Brasil levou o filme mais a sério que Arnaldo Jabor, que escreveu que o filme de Tarantino representava “a vingança do homem delicado contra os brutos e boçais”. a propósito, basta ver a foto do sujeito no início do artigo, para ver que se trata de alguém delicadíssimo…

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  7. Entre os mestres de Tarantino, talvez devam ser citados, além dos mencionados no artigo, os irmãos David e Jerry Zucker. Vi reproduzida na Veja foto com Christopher Waltz com um telefone à frente: lembrou muito uma cena de Top Secret, pastiche de filmes de guerra e espionagem dos irmãos Zucker, em que o general alemão-oriental interpretado por Jeremy Kemp atende um telefone gigante. Curiosamente, alguém, na página do IMDB dedicada a Top Secret! perguntou em 2004 se Tarantino teria sido roteirista do filme: http://www.imdb.com/title/tt0088286/board/thread/4216701?d=4216701&p=1#4216701. Entre os muitos filmes parodiados em Top Secret! estaria o filme do Enzo Castellari, citado como fonte maior de inspiração de Tarantino. Cabe ainda dizer que o filme dos Zucker não tinha nem de longe o conteúdo apologético da violência dos filmes de Tarantino.

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    1. Top Secret é um pastiche com algumas gags engraçadas, mas em filmes seguintes os Zucker decaíram a um nível baixíssimo, com piadas de mau gosto e até racistas. Na linha revisionista que tenta fazer comédia do nazismo, podemos lembrar a sátira inteligente de Trem da vida (1998), de Radu Mihaileanu; a comédia mentirosa de A vida é bela (1997), de Roberto Benigni; a paródia ousada de Primavera para Hitler (1968), de Mel Brooks – refilmada em 2005 por Susan Stroman, com péssimos resultados -, o chatíssimo seriado Guerra, sombra e água fresca, que remete a uma “comédia de nazismo” ainda mais antiga, Inferno Nº 17 (1953), de Billy Wilder, e outros mais. Jerry Lewis chegou a fazer uma comédia sobre o Holocausto, mas diante das críticas da comunidade judaica, teve a dignidade de reconhecer a idéia infeliz, não lançando o filme.

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  8. Tem razão no que disse sobre os Zucker. Não estava bem informado sobre a carreira dele após “Airplane” (no Brasil, “Apertem os cintos, o piloto sumiu” e “Top Secret!”. Não sabia que eles estavam por trás de algumas comédias péssimas e de franco mau gosto que os americanos vem divulgando ultimamente. Lembro também de outros dois filmes, que não cheguei a assistir, que fizeram abordagens cômicas da II guerra e que causaram polêmica: “Pasqualino Sete Belezas”, de Lina Wertmüller (ganhador do Oscar de filme estrangeiro), e “Mein Füehrer”, de Danny Levy, do qual ressalto a seguinte crítica:
    http://diplomatique.uol.com.br/acervo.php?id=2607&PHPSESSID=1572c75b492e250e80fe4b59bb805891

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  9. Pois é, Pedro, a comédia americana decaiu horrivelmente nas últimas décadas. Seu apogeu deu-se no cinema mudo (Mack Senett, Buster Keaton, Charles Chaplin, Ben Turpin, Harold Lloyd, etc.). Ela teve seus grandes momentos nas décadas de 1930-1950 (Irmãos Marx, Lucille Ball, “Hellzapoppin”, etc.), depois tentou renascer nos anos de 1960-1970 (Carl Reiner, Frank Oz, Mel Brooks, Woody Allen, Gene Wilder, Don De Louise, etc) até soçobrar nos anos de 1980-1990, com poucas produções originais. Hoje é um gênero lixeiro, que tenta fazer graça com as sobras dos filmes de sucesso, em paródias infames. Salvam-se os filmes de Frank Oz, e uma ou outra surpresa como ‘Renno’, sátira a uma academia de polícia do interior americano. Não sei se eu enquadraria “Pasqualino Sete Belezze” no gênero comédia. O filme tem cenas engraçadas passadas no campo de concentração, como a tentativa do Pasqualino de seduzir a Kappo gigantesca, malvada, fria como um bloco de gelo. Mas essas cenas são de uma comicidade sinistra, que nada retira do horror da situação. E o filme inclui cenas terríveis, como a do suicídio do anarquista, que não suportando mais viver ali, prefere afogar-se num tanque cheio de merda. Ainda não vi “Mein Führer”, mas pelo que li deve ser uma droga.

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  10. O cinema de Tarantino é de uma previsibilidade óbvia; não lhe move a preocupação filosófica em fazer a exegese da violência, ou trocar os sinais do bem e do mal no trágico massacre imposto pelos nazistas aos judeus. Como já o fizera em seus trabalhos anteriores, em Inglourious Basterds fica mais uma vez patenteado o enorme oportunismo comercial do diretor americano, um mestre na técnica cinematográfica de explorar plasticamente o sadismo de forma visceral, provocando uma verdadeira catarse coletiva em seu público fiel. Em Bastards, é recorrente a fórmula de narrativa bem sucedida de desnudar o maniqueismo brutal entre os personagens, mas com a suprema redenção final do bem sobre o mal, ainda que essas forças do bem, em sua vingança, empreguem meios tão abjetos quanto os seus desafetos o fariam.

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    1. Perfeito seu comentário, Daniel. Muito preciso e lúcido. Simplesmente detesto quando tentam nos fazer engolir “mocinhos” mais repugnantes do que os ditos “maus”. E fica uma pergunta, que extrapola o tema, mas surgiu de sua reflexão: se alguém como Hitler surgisse nos Estados Unidos ou em qualquer outro país, a população local agiria diferente dos alemães?

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      1. Os nazistas não são “ditos” maus, eles são e continuam maus mesmo no filme de Tarantino. O problema desse revisionismo cinematográfico mascarado é fazer os mocinhos (judeus e não judeus) usar os mesmos métodos dos nazistas para acabar com eles. Esse tipo de revisionismo torna os métodos nazistas legítimos, subvertendo a ética do humanismo. Já surgiram muitos Hitlers nos EUA e em outros países, mas em nenhum outro país as circustâncias históricas, culturais, políticas, econômicas, psicológicas, etc. foram as mesmas da Alemanha dos anos de 1930-1940. O nazismo e o Holocausto permanecem fenômenos únicos. Outras ditaduras totalitárias apresentam outras formas, mais ou menos atenuadas por outras características, como o fascismo italiano. As características históricas de cada povo são únicas, resultando em fascismos nacionais específicos. A radicalidade do nazismo continua a desafiar os historiadores na tentiva de entender as complexas características da história e da cultura do povo alemão, que, apesar de todo o horror ali já experimentado, continua a gerar grupos que propagam mundo afora revisionismo e neonazismo.

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  11. O Tarantino tem a articulação mental de uma criança distraída de cinco anos de idade. Não consigo enxergar na sua obra qualquer contribuição ao mundo ou à arte. Aliás, nas entrevistas que dá à imprensa, idem: ele tem o ar estupefato e o discurso tatibitate de quem não faz a mais remota ideia do que está falando. Brilhante resenha, Luiz.

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