Um mundo feito para a câmara

Excertos de: NAZARIO, Luiz. As sombras móveis. Belo Horizonte: Editora da UFMG / midi@rte, 1999.

O homem sempre desejou compartilhar seus sonhos e, deste modo, o cinema sempre existiu: o avanço das técnicas apenas tornou possível a exteriorização mecânica do sonho. Assim, alguns pesquisadores remontam a invenção do cinema à pré-história, citando as pinturas rupestres nas paredes das cavernas.

Outros mencionam a caverna de Platão e a câmara obscura imaginada no século IV a. C. por Aristóteles, e realmente inventada por Roger Bacon em 1267. Também observam o surgimento, na China do século XI, dos primeiros teatros de sombra, ou lembram o caráter cinematográfico das sequências de imagens bíblicas nos murais e vitrais das igrejas e catedrais medievais.

Outros ainda partem do século XV, quando a câmara obscura popularizou-se na Europa, encantando curiosos e servindo a pintores e amadores de perspectivas, ou quando Giovanni della Porta apresentou seu teatro luminoso (1558), revivendo as sombras móveis.

A partir do século XVII, surgiram diversos “brinquedos filosóficos” de projeção de imagens, pelo que o colecionador de filmes Henri Langlois, futuro fundador da Cinemateca Francesa, falava em trezentos anos de cinema (expressão conceitual que deu título a uma coletânea de artigos de sua autoria).

Citemos, por exemplo, as projeções criptológicas (1646), de Athanasius Kircher, que projetava imagens pintadas em placas de vidro; a lanterna mágica (1659), de Christiaan Huygens; as projeções luminosas (1668), de Robert Hooke; as placas animadas, de Johannes Zahn (1686), Samuel Rhanaeus (1713) e Petrus van Musschenbroek (1736); a lanterna nebulosa (1769), de Edmé-Gilles Guyot; o panorama (1787), de Robert Barker; o fantascópio (1799), de Étienne-Gaspard Robert.

Todos esses aparelhos mais ou menos assemelhados projetavam numa parede branca, com o auxílio de uma fonte de luz, imagens coloridas pintadas sobre plaquetas de vidro, segundo o princípio ainda hoje usado na projeção de slides.

No século XVIII multiplicaram-se as intrigantes anamorfoses – imagens e perspectivas deformadas que se tornam “legíveis” graças a espelhos cilíndricos; os poéticos caleidoscópios, que animavam, por jogos de espelhos, pedacinhos de vidro, contas diversas e papelotes coloridos, formando maravilhosos desenhos geométricos; os pequenos teatros de perspectivas, com planos de uma paisagem; e as caixas de sonho ou de vistas óticas, um dos entretenimentos mais populares, dando a ver àqueles que delas se aproximavam um pequeno mundo de imagens luminosas e coloridas.

Com o francês Seraphin, as imagens de Épinal, precursoras dos gibis e dos cartuns, atingiram seu apogeu. Os tableaux fondants apresentavam imagens diurnas que, progressivamente, tornavam-se noturnas, graças a efeitos de luz. E a lanterna de medo projetava espectros e monstros tão horríveis que os espectadores os atribuíam à magia de taumaturgos.

A expansão da comunicação em grande escala teve início com a ascensão da burguesia ao poder e a democratização do ensino. A primeira biblioteca circulante foi aberta em 1740, em Londres, e no final do século XVIII já havia na Inglaterra mais de mil desses estabelecimentos.

No começo do século XIX, com Hercule Florance, no Brasil; e com Niepce, na França, nasceu a fotografia (1816). Logo a descoberta do fenômeno da persistência retiniana da imagem (1826) por Peter Mark Roger gerou nova série de inventos. A “ciência divertida” passou a criar aparelhos cada vez mais sofisticados.

Por volta de 1833, surgiram a roda viva, a roda mágica e o tambor milagroso, gerando, pela primeira vez, a impressão de uma imagem em movimento: colocando-se um disco em rotação, as imagens isoladas fundiam-se num movimento contínuo.

Foram criados sucessivamente: o fenaquitiscópio, de Jacques Antoine Plateau; o coreutoscópio de Hugues; os discos estroboscópios, as rodas de fogo fantascópias, o taumatoscópio e o taumatrópio, discos de cartolina com duas imagens complementares na face e no verso; a roda de Faraday, um disco perfurado e observado a partir de um espelho; o zootrópio, o primeiro com fita, em forma de cartolina.

Em 1838, o estereoscópio, de Charles Wheatstone, permitiu a visão de clichês em relevo; no ano seguinte, Louis Daguerre gerou dioramas – imagens sobre placas de cobre prateadas, que tiveram sua apoteose em 1862, em Veneza, graças ao megalotoscópio, de Carlo Ponti.

O movimento de imagens captadas da realidade possibilitou o desenvolvimento de outras rodas vivas de projeção. Assim foram lançadas: as fantasmagorias de T.-W. Naylor (1843) e de Franz von Uchatius (1845); o bioscópio (1852) de Louis Jules Duboscq; o fotobioscópio (1867) de Henry Cook e Bonelli; o dinascópio (1868) de Augustin Santa Maria.

Na Inglaterra e nos Estados Unidos já se configurava a forma moderna da sociedade de massas. Perdendo o mecenato aristocrático, artistas e escritores foram obrigados a se profissionalizarem, colocando seus talentos a serviço do comércio livreiro, passando a depender do gosto do público para sobreviver. A introdução da imprensa mecânica reduziu os custos da impressão e aumentou as tiragens das publicações: em 1870 já dez jornais diários e quatro dominicais circulavam em Londres; em 1886, o The Times já vendia 45.754 exemplares.

O nascimento do cinema

Um velho sonho da humanidade estava prestes a realizar-se: a produção da imagem em movimento. Entre os pioneiros que procuraram animar a imagem, havia cientistas e artistas, e também comerciantes e charlatães. Mas a produção iconográfica de todos eles mostra um imenso poder de imaginação.

Edward Muybridge

O fotógrafo inglês Edward Muybridge fez inúmeros estudos de locomoção animal e registrou todas as fases do movimento de um cavalo a galope com seu zoopraxicópio (1872). Sua enorme coleção de imagens de homens e mulheres comuns, fotografados nus para dar a perceber os movimentos realizados pelos seus corpos, é uma das maravilhas do cinema primitivo. Abaixo, uma galeria com 12 imagens de Myubridge.


O astrônomo francês Jules Janssen fez um estudo do movimento através de tomadas fotográficas com seu revólver fotográfico (1873).

Étienne-Jules Marey

Inspirado por Claude Bernard, o médico Étienne-Jules Marey apaixonou-se pela velocidade e pelo que ela subtraía aos nossos sentidos: estudando as leis que regem a mecânica dos corpos, percebeu a morte como ausência de movimento. Publicou diversos estudos sobre esse fenômeno e realizou cerca de 400 filmes de excelente qualidade antes que os Lumière iniciassem sua produção.

Em 1878, Marey registrou, com seu fuzil fotográfico, as imagens de um cavalo a galope para provar ao governador da Califórnia, Leland Stanford, que no galope havia um momento em que as quatro patas do animal permaneciam suspensas.

Marey aplicou a fotografia ao estudo do movimento, inventando o cronofotográfico de placa móvel, que permitia registrar numa mesma placa de vidro doze tomadas de vista num segundo. Logo inventou o cronofotográfico de placa fixa, munido de um disco obturador dando a intervalos de tempo iguais imagens sucessivas de corpos em movimento sobre fundo negro.

Em 1883, perturbado pela superposição das imagens devidas à lentidão do sujeito, Marey imaginou uma nova técnica: a cronofotografia geométrica parcial. O atleta foi revestido de um costume negro com pontos brancos que sobressaíam no negativo.

Em 1888, Marey substituiu a placa de vidro por um rolo de papel sensível deslocando-se num movimento intermitente no espaço da objetiva, parando durante o tempo da abertura do disco obturador.

Marey filmou pássaros, animais aquáticos, cavalos e cavaleiros, cães, gatos, galinhas. Dois anos depois que Hannibal Goodwin patenteou seu filme em rolo sobre base de celulóide (1887), Marey comprou rolos emulsionados da Eastman e construiu um cronofotográfico de película móvel.

Logo depois, Marey criou o primeiro cinematógrafo para tomadas de vista animadas (1890) com rolo sensível transparente, mas ainda sem possibilidade de projeção.

Com seu projetor cronofotográfico (1892) Marey tentou resolver a questão da síntese do movimento, mas fracassou, porque os rolos de filme não eram perfurados.

Charles-Émile Reynaud

Charles-Émile Reynaud trabalhava com placas de vidro pintadas a mão, projetadas no seu praxinoscópio (1891), criando o teatro ótico que, exibido de 1892 a 1902, atraiu mais de 500 mil pessoas ao Museu Grévin.

René Leprince, William Friese-Greene

Nessa época, René Leprince na França e William Friese-Greene na Inglaterra construíram ao mesmo tempo câmaras de registro que trabalhavam com fitas de celuloide.

Ottomar Anschütz

Ottomar Anschütz construiu seu visualisador rápido (1894) para ver fotografias em movimento segundo o processo desenvolvido por Eadweard Muybridge.

Alfred Harmsworth (Lord Northcliffe)

Em 1896, Alfred Harmsworth, futuro Lord Northcliffe, fundou o Daily Mail, que se tornou o modelo do jornal popular com suas manchetes em negrito e as notícias em duas colunas. Em oito páginas, o tabloide resumia os acontecimentos nacionais e internacionais, entregava uma novela e atualizava o leitor sobre a vida social, os esportes, a cotação da Bolsa, os assuntos femininos.

Thomas Alva Edison

Em 1889, depois de ver o aparelho de Étienne-Jules Marey em Paris, Thomas Alva Edison (1847-1931), inventor da luz elétrica, do fonógrafo, do microfone e do telégrafo, decidiu criar uma câmera de captura e projeção de imagens.

Em 1891, William Dickson, engenheiro-chefe dos Edison Laboratories (Laboratórios Edison) inventou o cinetoscópio (ou quinetoscópio, ou kinetoscópio), que Edison logo patenteou como invenção sua. Um dos filmes mais conhecidos produzidos com o cinetoscópio é Fred Ott’s Sneeze (O espirro de Fred Ott, 1894), de William Dickson.


O aparelho consistia numa caixa de madeira dentro da qual uma película perfurada de 35 mm girava uma sucessão de fotogramas, dando a impressão de movimento contínuo. Edison rodou uma série de pequenos filmes em seu pioneiro estúdio, o Black Maria.

Uma apresentação pública de alguns desses filmes na loja dos irmãos Holland, na Broadway, a 14 de abril de 1894, antes da primeira sessão de cinema dos Irmãos Lumière, rendeu US$ 120 aos organizadores, pelo que os norte-americanos reivindicam a invenção do cinema, tendo comemorado o centenário do cinema em 1994, e não em 1995 como o resto do mundo.

O cinetoscópio prenunciava o cinema e foi o primeiro aparelho a usar uma película em fita contínua, inaugurando o sistema de perfuração nas margens da película fotográfica que vigora até hoje.

Fundada em 1889 pelo inventor e empresário Thomas Edison, a Edison Manufacturing Company produziu alguns filmes primitivos que já trilhavam os caminhos da estética da vertigem e da catástrofe.

O cinetoscópio de Edison já usava película em fita contínua, mas apenas um espectador por vez podia assistir ao filme, através de um orifício.

Em 1896, Edison apresentou ao público seu Vitascope (Vitascópio). Um jornal da época anunciou: O aparelho confunde cientistas, desafia análises, cria a maravilha da visão esférica, delicia profundamente, faz cócegas provocando o riso, instiga a admiração cardíaca, emociona os nervos e incidentalmente cria o aplauso desvairado.

A novidade espalhou-se em todo o mundo. Mesmo o Papa Leão XIII deixou-se filmar, passeando, durante três minutos, pelos jardins do Vaticano. Segundo o padre espanhol Enrique Planas, diretor da Filmoteca do Vaticano, “ao ver o filme percebe-se que o papa não tinha ideia do que era o cinema: ficava quieto como se fosse para uma foto e vê-se seu secretário fazendo um gesto para que ele se mexa e acene com a mão”.

Os primeiros filmes eram produzidos por pequenas companhias que encenavam corridas e perseguições, documentavam incêndios e terremotos, fotografavam cenas da vida cotidiana e registravam ocorrências sensacionais, como a eletrocussão de um elefante.

O cinema americano prosperou rapidamente graças aos imigrantes que, sem dominar a língua, encontraram nas imagens movimentadas e silenciosas sua melhor e mais barata diversão.

Enquanto na Europa o teatro, o concerto e a ópera continuavam a atrair mais o público, na América abriam-se Nickelodeons, salas de cinema cujo ingresso custava apenas um níquel, com capacidade para até seis mil espectadores.

A Edison Manufactoring Company realizaria mais de uma centena de curtas-metragens. Alguns deles já trilhavam os caminhos da estética da vertigem e da catástrofe, como a edição desenvolvida em Vida de um bombeiro americano (1902).

Outros eram verdadeiros poemas visuais, como a maravilhosa panorâmica de Coney Island at Night (1905), de Edwin Porter; ou a rosa vermelha desabrochando em grande plano em Three American Beauties (1906).

Mas os filmes pioneiros de Edison não foram projetados numa tela para um público de espectadores: seu aparelho permitia o acesso às imagens em movimento a apenas um espectador de cada vez. A “projeção” ocorria no interior da máquina, dotada de orifício e visor, mediante a inserção de uma moeda. As imagens eram vistas, assim, quase clandestinamente.

A partir de 1894, Edison produziu mais de uma centena de filmes.

Fire Rescue Scene (1894): bombeiros apagam um incêndio, cujas chamas foram coloridas a mão na película.

Annabelle Serpentine Dance (1895): os véus esvoaçantes da dançarina Annabelle Moore em sua famosa dança são dotados manualmente de um colorido irreal.

The Kiss (1896), de William Heise: o registo do primeiro beijo do cinema, proporcionado por May Irwin e John Rice, um casal de atores maduros: ela, gorda, ele, bigodudo, reencenaram para a câmara o ato final do musical The Widow Jones, que haviam apresentado com sucesso na Broadway. O beijo inocente e apaixonado, ao ser mostrado em close-up, chocou os moralistas e causou a primeira demanda de censura ao cinema.

No mesmo ano surge a primeira manifestação concreta da censura ao cinema com a colocação de uma “grade” na película sobre os seios e o colo do corpo vestido da dançarina do ventre Fatima, em outro filme da Edison Manufactory Company, intitulado Fatima’s Coochee-Coochee Dance (1896).

Em 1896, o italiano Promio rodou, de uma gôndola, uma tomada de Veneza, realizando o primeiro travelling conhecido na história do cinema.

O inglês Robert William Paul (1869-1943), que produzia aparelhos elétricos para indústrias, recebeu a encomenda dos exibidores americanos Demetrius Anastas Georgiades (1860-1885) e George John Tragidis (1867-1888) de criar um projetor semelhante ao Kinetoscope, sem patenteamento na Inglaterra. Ele batizou seu projetor de Theatrograh (Teatrógrafo) e o apresentou no Colégio Técnico de Finsbury em 20 de fevereiro de 1896, mesmo dia em que o cinematógrafo de Lumière era exibido na Politécnica da Regent Street. Um modelo aperfeiçoado do aparelho foi patenteado por Paul em 2 de março de 1896 e a primeira exibição do Theatrograh para o grande público deu-se no Egyptian Hall em Piccadilly no dia 19 de março de 1896.

Depois de entregar a encomenda, Paul resolveu construir um aparelho igual para si. Como as únicas películas disponíveis eram as de Edison, ele procurou a ajuda do fotógrafo e designer Birt Acres, que criou uma câmera 35mm, a Paul-Acres Camera, com a qual Paul rodou os primeiros filmes do cinema inglês: Oxford & Cambridge University Boat Race, Arrest of a Pickpocket, The Derby, Comic Shoe Black, Boxing Kangaroo, Performing Bears, Boxing Match, Carpenter’s Shop, Dancing Girls, Rough Sea at Dover, and Tom Merry, Lightning Cartoonist.

O mais famoso deles foi Soldier’s Courtship, filmado no telhado do Alhambra Theatre na Leicester Square em abril de 1896, com Fred Storey, Julie Seale e a esposa de Paul, Ellen. Obteve tanto sucesso que Paul lançou no ano seguinte uma segunda versão do filme.

Paul também filmava eventos da sociedade e seu filme do Derby de 3 de junho de 1896 foi exibido em dois grandes teatros de Londres vinte e quatro horas após a corrida de cavalos ter tido lugar, inaugurando assim os cinejornais.

Ele também construiu o primeiro estúdio de cinema da Inglaterra, com um laboratório adjacente capaz de processar oito mil pés de película por dia. Empregava uma equipe de técnicos habilidosos como G.H. Cricks, J.H. Martin, Jack Smith, Walter Booth e Frank Mottershaw, que tornavam os truques de seus filmes bem elaborados e tecnicamente perfeitos para a época. Foi o “pai da indústria cinematográfica britânica”[1].

Quando Jenkins e Armat desentenderam-se sobre a paternidade da invenção do Phantoscope, acabaram por ceder a autoria do invento a Edison, que rebatizou o projetor de Vitascope, apresentando-o ao público como criação sua em 23 de abril de 1896 no Koster and Bial’s Music Hall em Nova York.

O Vitascópio, que se popularizou rapidamente nos teatros de variedades dos EUA, e o Teatógrafo inglês tornaram-se os dois aparelhos de projeção mais vendidos no mundo. Logo Edison aperfeiçoou seu aparelho, lançando, em novembro de 1896, o Projectoscope (Projetoscópio) ou Projecting Kinetoscope (Cinetoscópio Projetante), deixando de fabricar o Vitascópio.

Auguste e Louis Lumière

Os irmãos Auguste (1862-1954) e Louis Lumière (1864-1948) nasceram em Besançon, na França, filhos de um fotógrafo e dono de uma fábrica de filmes e papéis fotográficos. Após a escola técnica, eles realizaram uma série de estudos sobre os processos fotográficos na fábrica do pai, Antoine.

Entre 1894 e 1895, os Lumière sintetizaram os aparelhos inventados em sistemas menos práticos num único aparelho funcional, para registro e reprodução de imagens: o Cinématographe Lumière (Cinematógrafo Lumière), patenteado a 13 de fevereiro de 1895, sob o nº 245032. Pouco depois, no dia 19 de março de 1895, filmaram, em três versões, a saída dos operários da fábrica do pai em Lyon, e a 22 de março de 1895, apresentam o invento à sociedade científica.

A primeira sessão pública do Cinématographe Lumière (cinematógrafo Lumière) ocorreu no dia 21 de setembro de 1895, no Eden Théâtre, de Lyon – a primeira sala de cinema do mundo. Foi uma sessão apenas para convidados, que incluiu a exibição de L’Arrivé d’un train à la Ciotat (A chegada do trem na estação de Ciotat), o filme que assombrou a audiência com o realismo da locomotiva avançando sobre o público, ameaçando atropelá-lo.

Mas o nascimento oficial do cinema deu-se apenas três meses depois, no dia 28 de dezembro de 1895, com a apresentação do cinematógrafo pela primeira vez a um público pagante.

No Salão Indiano do Grand Café no número 14 do Boulevard des Capucines, em Paris, 33 pessoas assistiram, por um franco, ao programa de dez filmes curtos de 30 a 50 segundos cada um, rodados pelos Lumière.

O primeiro programa não incluía L’Arrivé d’un train à la Ciotat (A chegada do trem na estação de Ciotat), que foi anexado nas sessões seguintes e causou grande espanto, demonstrando que o cinema não era uma mera curiosidade, mas um meio poderoso, capaz de gerar as mais fortes emoções.

A primeira sessão de cinema em 1895: o filme foi projetado numa tela, o auditório pagou um ingresso e as imagens em movimento foram vistas coletivamente e não mais individualmente: a definição moderna de “cinema”.


A narrativa tradicional dos historiadores do cinema de que o público se assustara ao ver A chegada de um trem na estação de Ciotat (L’Arrivé d’un train à la Ciotat) foi questionada pelo teórico Tom Gunning: tal reação não figuraria em nenhum documento da época sobre a exibição, sendo mais sensato admitir que o assombro do público, se é que ocorreu, teria vindo do choque entre a força da ilusão realista das imagens em movimento e a certeza de que se tratava apenas de um truque.

Durante semanas, milhares de pessoas acorreram ao Grand Café para ver o trem de Lumière “sair da tela”. Além de A chegada de um trem na estação de Ciotat (L’Arrivé d’un train à la Ciotat) , o programa final incluía L’Arroseur arrosé (O regador regado), Le Repas de bébé (O almoço do bebê), La Sortie de l’usine Lumière à Lyon (A saída da fábrica Lumière em Lyon), La mer (O mar)…

No entanto, existe um texto da época, assinado pelo escritor russo Maximo Gorki, então em Paris, que descreveu com as mais fortes expressões a sensação que experimentou ao ver o trem dos Lumière chegando à estação de Ciotat: Surge um trem que, tal qual uma flecha, mergulha direto sobre o espectador. Cuidado! Ribombando na obscuridade, ele se apressa em transformá-lo num saco de pele esfolada, cheio de carniça humana e ossos quebrados, e teme-se que ele destrua esta sala, esta casa onde abundam o vício, as mulheres e a música, onde o vinho corre em torrentes, só deixando atrás dele ruínas e poeira. Mas, na realidade, não passa de um trem fantasma [2].

Nesse transporte precário, mas já capaz de abalar os nervos dos espectadores com tremendas catástrofes virtuais, nascia o espetáculo cinematográfico, a despeito de todas as datas e patentes.

A sessão de cinema no Grand Café foi um evento semelhante às sessões de cinema que conhecemos hoje: uma plateia se dirige a uma sala e paga ingressos para ver coletivamente imagens em movimento projetadas numa tela.

O lucro desta primeira sessão com receita de 35 francos foi de apenas cinco francos, pois a sala fora alugada por um ano ao preço fixo de 30 francos. Mas a repercussão foi enorme, com artigos elogiosos na imprensa atraindo entre 20.000 e 25.000 espectadores ao Salão Indiano, com capacidade para 100 a 120 espectadores pagantes por sessão.

Apesar da precariedade do aparelho – um pequeno caixote dotado de manivela – as lentes das câmeras de filmar dos irmãos Lumière obtinham grande profundidade de campo, um efeito maravilhoso que se perderia nas câmaras mais modernas.

Como o cinematógrafo dos irmãos Lumière fora patenteado, mas não comercializado, inúmeros inventores, engenheiros e eletricistas lançaram-se à produção de novos aparelhos baseados em seus princípios.

Eugene Augustin Lauste e Woodville Latham apresentaram à imprensa seu eidoloscópio (Eidoloscope) em 21 de abril de 1895 e exibiram a um público pagante um programa cinematográfico de 8 minutos a partir de 20 de maio de 1895 durante todo um mês numa loja alugada no número 156 da Broadway.

Francis Jenkins e Thomas Armat projetaram filmes com seu fantoscópio (Phantoscope) na Cotton States Exposition de Atlanta em setembro de 1895.

Na Alemanha, os irmãos Max e Emil Skladanovsky empregaram seu bioscópio (Bioscop) com dois projetores funcionando simultânea e alternadamente no primeiro programa de imagens projetadas no Wintergarten de Berlim em 1° de novembro de 1895.

A American Mutoscope and Biograph Company, fundada em 1895 por Henry Norton Marvin, William Kennedy Dickson, Herman Casler e Elias Koopman como foi a primeira companhia americana dedicada à produção e exibição de filmes (mais de 3.000 curtos e doze longas-metragens até fechar as portas em 1928), lançou o Biograph.

Birt Acres inventou, com seu parceiro Robert Paul, a primeira câmera de filmar inglesa de 35 mm, o Kineopticon, patenteado em 27 de maio de 1895; e o primeiro projetor de filmes, o Birtac. Acres foi também o primeiro repórter cinematográfico e o primeiro cineasta europeu a mostrar seus filmes ao público dos EUA. São seus os primeiros filmes da era vitoriana: Oxford and Cambridge Boat Race, The Arrest of a Pickpocket, The Comic Shoeblack, The Boxing Kangaroo, Performing Bears, todos rodados em 1895. No dia 10 de janeiro de 1896, Acres apresentou um programa de filmes à Lyonsdown Photographic Society no Lytton Road Assembly Rooms de New Barnet: foi a primeira sessão de cinema no Reino Unido. No dia 14 de janeiro de 1896, Acres demonstrou seu sistema Kineopticon para convidados no Queen’s Hall de Londres. O programa solo de Robert Paul ocorreu no Alhambra Theatre em 25 de março de 1896.

O cinematográfico dos Lumière tinha o chame de seu nome e seu sucesso foi imediato, difundindo-se com a velocidade de um raio, em todo o mundo. O nome do aparelho passou a identificar, em todas as línguas, a nova mídia que surgia: il cinema, el cine, le cinéma, the cinema, das Kino, o cinema… O ano de 1895 entrou assim para a História como a data da criação do cinema. De fato, de todas as máquinas de sonhos do século XIX, só o cinematógrafo permaneceu.

Os filmes dos irmãos Lumière eram rudimentares registros da vida cotidiana, filmados ao ar livre. São geralmente classificados como documentários, mas, embora alguns possam ser assim considerados, a maioria deles eram realizados a partir de encenações, apresentando os embriões de uma narrativa cinematográfica.

Nos primeiros anos do cinema não havia salas de exibição regulares, os exploradores eram mercadores de feira que erravam de cidade em cidade. Os filmes eram mostrados em parques de diversões, feiras, circos, teatros de variedades e salas alugadas.

O mágico americano Carl Hertz, nascido em San Francisco, adquiriu um Theatrograph  de Robert Paul e o levou à África do Sul a bordo do navio Royal Mail Steamer Norman. Exibiu filmes aos passageiros em 28 de março de 1896, tornando-se provavelmente o primeiro projecionista em alto-mar. Em Johannesburg, nos dias 9 e 11 de maio de 1896, apresentou no Empire Palace of Varieties a primeira sessão de cinema daquele país. No programa: Highland DancesStreet Scenes in LondonTrilby Dance, Military Parade. Seguindo depois para a Austrália, Hertz exibiu o Theatrograph para convidados na Melbourne Opera House em 17 de agosto de 1896 e no dia 22 apresentou seu programa a uma audiência de pagantes na primeira sessão de cinema no país, sem contar exibições anteriores do Kinetoscope de Edison. Hertz continuou a viajar pelo mundo, levando seu espetáculo para o Ceilão, a Índia, a China, o Japão, as Ilhas Fiji e o Havaí. [3]

O primeiro cinema tendia para o sensacionalismo, sendo um espetáculo eminentemente popular e barato. Como observou Paulo da Cunha, “a chegada dos filmes nas barracas de feira desempregou um bom número de monstros”. O cinema substituiu o freakshow, oferecendo, numa forma tecnicamente atraente, as sensações fortes que o público procurava naqueles espetáculos, além de ser uma diversão para todos os bolsos.

Em 1896 surgiu a primeira sala do mundo especialmente construída para a projeção de filmes, a Picture House, em New Orleans.

Em 1897 foi inaugurado em Paris o Cinéma Lumière, a primeira sala de cinema da Europa. Mas neste mesmo ano, o invento de Lumière foi banido dos EUA por Thomas Edison, que obteve a patente do filme perfurado.

No Brasil o cinema foi trazido por imigrantes italianos, e a primeira sala permanente de cinema foi inaugurada em 1897 na Rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro.

Georges Méliès

Ao assistir à primeira projeção dos filmes dos Irmãos Lumière, o filho de um industrial abastado chamado Georges Méliès (1861-1938), que havia comprado em 1890 o Théatre Robert Houdin para fazer números de ilusionismo aos 35 anos, ficou impressionado com aquelas imagens: “Que truque fantástico! Quero entrar neste negócio!”, exclamou.

Méliès desejou comprar o aparelho, mas Auguste Lumière não o vendeu alegando pessimismo: “O cinematógrafo é uma moda passageira e sem futuro”, teria dito, pretendendo, na verdade, guardar para si os lucros da invenção.

Inconformado com a recusa de Auguste Lumière em vender-lhe o cinematógrafo, Georges Méliès acabou comprando um Teatrógrafo em 1896 de um ótico londrino e alguns filmes da Kodak, realizando, neste mesmo ano, cerca de 80 pequenos filmes no estilo dos de Edison e Lumière, incluindo o primeiro filme publicitário.

Artista completo, Méliès desenhava, elaborava os cenários e os figurinos, escrevia os argumentos, produzia, fotografava, dirigia, protagonizava e projetava seus próprios filmes.

Um dos truques mais famosos de Méliès nasceu por acidente: ao projetar uma cena que rodara na Praça da Ópera, com uma câmara defeituosa, ele viu um ônibus “transformar-se” num carro – veículo que passara ali logo depois do outro. Transformou esse “defeito” num “efeito” em Escamotage d’une dame au Théâtre Robert Houdin (O escamoteamento de uma dama no Teatro Robert Houdin, 1896), filmando uma mulher sentada ao ar livre, interrompendo a filmagem, esperando ela sair do quadro para depois filmar a cadeira vazia.

No filme projetado, a mulher parecia evaporar-se. Aperfeiçoando e variando o truque ao londo de suas produções, Méliès substituiu a mulher por um diabo, um jarro, um quadro, uma flor, um relógio, um cachorrinho, uma fotografia…

Em Une Partie de cartes (Um jogo de cartas, 1896) um mágico brinca com cartas, fazendo-as crescer aos olhos do público, animando reis e rainhas que aparecem e desaparecem por sobreimpressão de imagens. Em outro filme, Méliès pinta seu próprio retrato, que se anima magicamente. O truque é aprimorado numa fita em que homens explodem e se destroçam numa briga, com os corpos sutilmente substituídos por bonecos.

Em 1897, Méliès montou o primeiro estúdio cinematográfico na Europa – um galpão com telhado de vidro para inundar a cena com luz solar – em sua propriedade de Montreuil, na periferia de Paris (o espaço foi demolido na década de 1950).

Dois anos mais tarde, Méliès realizou o primeiro filme “longo”, realizado em 11 cenas de um minuto juntadas e encadeadas como pequenos capítulos do “romance” da vida do capitão Dreyfus, injustamente acusado de traição, desonrado e preso na Ilha do Diabo. Este foi também o primeiro filme político da história do cinema, sofrendo proibição devido às brigas que provocava onde era projetado: L’Affaire Dreyfus (O caso Dreyfus, 1899).

Atribui-se também a Méliès a primeira panorâmica num filme rodado em exteriores, em Panorama de la Seine (Panorama do Sena, 1899).

Depois de La Crémation (A cremação. 1899), onde encenou um auto-de-fé promovido pela Inquisição Espanhola, Méliès colocou, em Jeanne d’Arc (1899), 500 figurantes em cena, outro recorde para a época.

O mago também criou a reportagem fictícia em Le Couronnement du roi Édouard VII / Le Sacre d’Edouard VII (A coroação do rei Eduardo VII / A sagração de Eduardo VII, 1902) quando, impedido de filmar a cerimônia de coroação, reconstituiu-a em estúdio, com um mercador de vinho no papel do rei e uma lavadeira como rainha, lançando o filme em Paris e Londres no dia mesmo do ato. A cerimônia aparece mais completa no filme, porque, na realidade, o rei adoeceu e pediu que ela fosse abreviada.

A fantasia era o domínio de Méliès, com filmes como L’homme orchestre (O homem-orquestra, 1900) e L’homme à la tête de caoutchouc (O homem da cabeça de borracha, 1901), onde um químico utiliza uma sanfona de ar para fazer inchar uma cabeça semelhante à sua, posta sobre uma mesa; seu assistente, surpreso com a novidade, tenta repetir a façanha, mas exagera na força e acaba por estourar a cabeça…

Mergulhando no universo fantástico que era seu domínio, Méliès empreendeu Le Voyage dans la Lune (Viagem à Lua, 1902), com 280 metros ou cerca de 15 minutos. Os distribuidores, acostumados com filmes de 20 a 30 metros, duvidavam que o público suportasse uma fita tão longa; o público de então, por sua vez, não imaginava como eram fotografadas as paisagens imaginárias.

Nessa fabulosa ficção científica, o foguete pousa na Lua, furando um olho de papelão de sua face “humana”, e monstros selenitas são explodidos pelos viajantes com simples guarda-chuvadas. Méliès descreveu a impressão que o filme causou no público em sua estreia: No primeiro quadro, o público olhou em silêncio. No segundo, começou a se interessar; no terceiro, os risos começaram a aumentar. No quarto, no quinto, no sexto, eles se acentuaram cada vez mais. Nos quadros seguintes, aplausos fortes estalaram, para não mais parar até o fim. Nos últimos quadros, era o delírio. Jamais se tinha visto um filme dessa espécie, porque ele foi o primeiro do gênero.

Pirateado nos EUA, Voyage à la Lune permitiu a abertura do primeiro cinema permanente em Los Angeles, quando Hollywood era apenas o nome de um de seus bairros. Para defender os diretos de sua produtora Star Film, Méliès mandou seu irmão Gaston para a América.

Em seu estúdio, o primeiro da Europa, Méliès continuou a aprimorar as técnicas de ilusionismo, aplicando suas fórmulas mágicas ao cinema, combinando travellings com sobreimpressão de imagens, desenvolvendo a exposição múltipla e usando pioneiramente o truque da representação espelhada que substitui o reflexo. Realizou cerca de 500 filmes curtos, entre os quais:

* L’oeuf du sorcier / L’oeuf magique prolifique (O ovo do feiticeiro / O ovo mágico prolífico, 1902): um esqueleto mágico faz surgir um ovo que cresce e se transforma numa cabeça de mulher.

* Le mélomane (O melômano, 1903): um maestro arranca diversas cabeças de seu pescoço para arranjá-las como notas musicais vivas cantando numa pauta.

* L’auberge du bon repôs (O albergue do bom repouso, 1903): um viajante hospeda-se num hotel onde um diabo já se encontrava acomodado. Para vingar-se do incômodo visitante, o diabo desloca todos os móveis do quarto, criando tal pandemônio que o hóspede vê-se obrigado a deixar o alojamento.

* Le royaume des fées (O reino das fadas, 1903): uma princesa é sequestrada por um bruxo e seus salvadores não hesitam em entrar dentro de uma baleia, entre muitas outras peripécias em cenários delirantes, num dos filmes mais encantadores e feéricos de Méliès.

* Illusions fantasmagoriques (Ilusões fantasmagóricas, 1903): um mágico corta um garoto ao meio; as duas partes caem no chão e transformam-se em dois rapazes que se põem a lutar; o mágico faz desaparecer um deles e o outro se transforma nas bandeiras da França e da Inglaterra, que o mágico agita vigorosamente.

* La lanterne magique (A lanterna mágica, 1903): dois palhaços montam uma lanterna mágica de onde saem dançarinas vivas.

* La sirène (A sereia, 1904): um mágico esvazia um aquário na cartola, de onde tira peixes e põe no aquário, que se agiganta para abrigar uma sereia.

* Le juif errant (O judeu errante, 1904): Méliès é o Judeu Errante que sonha e tem visões de Cristo no Calvário, atormentado pelo Demônio e condenado por um anjo a errar sob as intempéries: caminhando entre dois cenários, Méliès dá aos seus planos uma dimensão tridimensional[4].

* Le Voyage atravers l’impossible (A viagem através do impossível, 1904): um cientista inventa um meio de transporte que é uma combinação de automóvel, trem, foguete, zepelim e submarino; com membros da Sociedade Geográfica e curiosos, ele empreende uma extravagante viagem pelo ar, pela terra, pelo mar e pelo espaço.

* Sorcellerie culinaire (Caldeirão infernal, 1904): um cozinheiro expulsa um mendigo da cozinha; o mendigo era um mago, que se vinga liberando uma porção de demônios, que saem de um saleiro que se agiganta, mergulham nos caldeirões e escapam pelos fornos – uma tropa de diabinhos que pululam, subindo e descendo a escada, perseguidos pelo cozinheiro, finalmente lançado no panelão.

* L’ange de Noël (O anjo de Natal, 1905):um anjo aparece no quarto de um menino que acaba de se deitar e leva-o a um mundo de brinquedos gigantes, com soldadinhos de chumbo animados, mulheres-borboletas que emergem de uma flor enorme, um mundo encantado que se desfaz assim que o menino desperta.

* Les quatre cents farces du diable (As quatrocentas farsas do diabo, 1906): um judeu, enviado pelo diabo alquimista, conduz um engenheiro numa charrete puxada por um cavalo apocalíptico, esqueleto vivo, através do espaço fantasmático.

* Les incendiaires (Os incendiários, 1906): a cena final de guilhotina parecia tão realista que mulheres desmaiavam na sala, levando a censura a cortá-la. Desde então, Méliès decidiu abandonar os documentários e os filmes políticos, mergulhando em suas fantasias delirantes

* Le raid Paris-New York en automobile (A corrida de carro Paris-Nova York, 1908): os pilotos da corrida de automóveis Nova York- Paris encontram fantásticos obstáculos pelo caminho.

* Les aventures de Baron de Munchhausen (As aventuras do Barão de Munchhausen, 1911): depois de um lauto banquete, o Barão de Munchhausen repousa num divã ornamentado com um espelho e tem um pesadelo, no fim do qual um monstro de papelão “sai” da moldura e derruba no chão o sonhador.

* À la conquête du pôle (A conquista do Polo, 1912): uma soufragette tenta a todo custo integrar a anunciada corrida ao Polo Norte, onde os mais audazes exploradores são devorados pelo Abominável Homem das Neves; o filme – um dos últimos trabalhos de Méliès, inspirou-se em Jules Verne e a engenhoca criada para representar a criatura servirá de modelo para os futuros monstros do cinema.

Divididos entre mágicas, diabruras, sonhos, viagens, fuzarcas e reconstituições, os filmes de Méliès são ingênuos, precários e repetitivos, mas também inventivos, engraçados, poéticos. Alguns, pintados a mão por meninas de 12 a 13 anos, conservam seu colorido maravilhoso, antigo e irreal. Eles introduzem o espectador num universo bizarro pelo seu primitivismo, tornando por isso mesmo suas imagens um espetáculo fantástico e divertido.

Nesse imaginário, as fantasias sexuais masculinas materializam-se de forma ingênua: mulheres tomam a forma de objetos ou objetos tomam a forma de mulheres – mulheres-borboletas, mulheres-leques, mulheres-estrelas, mulheres-cometas. É um reino masculino, onde reina a figura do diabo – um sedutor frequentemente interpretado pelo próprio Méliès.

Como para o mágico a finalidade da expressão é o truque, para obtê-lo Méliès utilizava tanto os truques óticos à disposição – exposição múltipla, fusão de imagens, cortes seguidos de retakes – quanto os recursos do teatro adaptados à lente da câmara: maquilagem carregada, máscaras grotescas, cenografia elaborada, maquinaria ilusionista, divisão de cenas em atos, mímica exagerada, maquetes, aquários, alçapões, cabos para voo.

Méliès utilizou o close-up em alguns momentos espetaculares, e uma das mais famosas imagens do cinema é o close-up do rosto de sua Lua de pastelão com o olho direito furado pelo foguete.

Mas a regra do cinema de sua época, que Méliès respeitou, era manter a câmara fixa, reproduzindo a perspectiva única do espectador de teatro, imóvel em sua poltrona, sem multiplicar os pontos de vista, enquadrando os atores como se estivessem num palco, mantendo deles uma distância que permitia à audiência a percepção de corpos inteiros representando uma “peça”.

Nos anos de 1910, a Pathé e a Gaumont construíram seus estúdios e tornaram-se produtoras de longas-metragens realistas, que alcançavam grande sucesso. Com o desenvolvimento da linguagem cinematográfica, os filmes de Méliès tornaram-se antiquados, como truques de magia ultrapassados [5].

O artista foi, pouco a pouco, esquecido. Méliès havia consumido sua fortuna produzindo seus filmes, que foram muito imitados, e já não vendiam como antes. Arruinado, abandonou o cinema, vendeu seu estúdio, suas propriedades.

Em 1923, devorado pelas dividas, deprimido com o desinteresse do público pelos seus filmes, num acesso de raiva impotente Méliès lançou-os ao fogo: dos 552 curtas-metragens que realizou[6] apenas cerca de 100 puderam, com o tempo, ser recuperados. Certa noite, em 1936, atravessando o hall gelado da estação Montparnasse do metrô, Paul Gilson, um fã de cinema, reconheceu, num velho ambulante que ali vendia brinquedos e bombons para sobreviver, o rosto de Georges Méliès.

Escandalizado com o desprezo da França pelo seu primeiro autêntico cineasta, Gilson informou Léon Druhot, diretor do Ciné-Journal, que iniciou uma campanha para ajudar Méliès. O Estado francês acabou por ceder-lhe um castelo no qual ele pode viver com conforto seus últimos anos de vida, que foram pobres, mas repletos de homenagens.

Charles Pathé e Ferdinand Zécca

Em 1898, Charles Pathé engajou “por algumas semanas” um jovem corneteiro de feira chamado Ferdinand Zécca (1864-1947). Essas poucas semanas prolongaram-se por quase vinte anos.

Para atender ao pedido do proprietário dos ­Grands Magasins Dufayel, Zecca interpretou Le Muet melomane (1899), projetado ao ritmo de um metrônomo sincronizado com um cilindro de cera com música gravada – uma primeira experiência em cinema sonoro.

Em 1900, Charles Pathé criou grandes fábricas de produção de vistas cinematográficas e, para a Exposição Universal, sua companhia instalou um pavilhão com imagens animadas filmadas com Ferdinand Zecca no ateliê de Vincennes. Experimentando, iam descobrindo a linguagem cinematográfica: o grande plano, a fusão, a sobreimpressão.

Ferdinand Zécca teria sido o primeiro a usar o efeito de flashback no drama Histoire d’un crime (1901); mas Zecca saía-se melhor nos filmes fantásticos, que rodava para o público infantil.

Em Les Sept châteaux du diable (1901) Zécca reconstituiu em estúdio a erupção de um vulcão da Martinica: uma vasta tela de fundo representava a cidade de Saint-Pierre, dominada pelo Monte Pelete; em primeiro plano, um vasto tanque de água representava o mar; na hora da erupção, homens escondidos atrás do Monte queimavam enxofre; outros cuidavam para que a fumaça soprada para o cenário simulasse a lava, enquanto serragem espalhada simulava a chuva de cinzas e o tanque, balançado, imitava as ondas; no fim, Zécca precipitava o conteúdo do tanque na tela do fundo para mostrar a inundação.

Além de centenas de filmes curtos, Zécca realizou o ambicioso La Vie et la passion de Jésus Christ (A vida e a paixão de Jesus Cristo, 1903), em quatro partes, com 38 tableaux-vivants de fundo religioso, inspirados em gravuras de Gustave Doré e coloridos a mão com grande precisão técnica.

O filme inovou ao utilizar movimentos de câmara na passagem sem cortes de um cenário a outro e aproximando o ator do público, ainda que “acidentalmente” (sem o objetivo de enfatizar o drama).

Na Pathé, Segundo de Chomón explorou o truque do filme projetado de trás para frente em Le Plongeur fantastique (1905), que mostrava de diversas maneiras um nadador mergulhando na água e logo ressurgindo dela e lançando-se para cima até o trampolim.

O truque foi desdobrado em cenas de todos os filmes fantásticas do “cinema primitivo”: roupas que saíam do corpo dos personagens, pessoas que dormiam em camas que se transformavam em barcos. Em 1905 foram fundados os estúdios da Pathé, que passou a controlar os biógrafos clandestinos.

Enquanto nos EUA já se notava uma obsessão dos diretores em criar um cinema cada vez mais realista, na França produtores rivalizam em teatralidade e o público se embriagava com o cinema-palco. Zécca continuou a produzir filmes fantasiosos similares aos de Méliès, como The Golden Beatle (O besouro dourado, 1907), com ações mágicas de um colorido esfuziante.

O cinema concorria com o teatro, cujos representantes reagiam com desprezo ao novo meio, frequentado apenas pelas camadas inferiores. O cinema europeu procurou legitimar-se através da imitação do teatro, arte também desprezada em seus inícios, mas com que era agora prestigiada pelo público “bem pensante”. Em 1908, a Pathé fundou a Société Cinématographique des Auteurs et Gens de Lettres, desenvolvendo o chamado Film d’Art, engajando escritores, dramaturgos e membros da Comédie Française.

O nome de Zécca voltou à tona em 1911, quando a Pathé lançou a série de pequenos melodramas intitulada Scènes de la vie cruelle (Cenas da vida cruel). De 1912 a 1923, Zécca passou a exercer cargos administrativos na Pathé.

O cinema dos pioneiros era impudico e, como atração de feira, buscava o sensacional. Enquanto os bordéis exibiam filmes pornográficos, os documentaristas captavam “homens-cometas” despencando da Torre Eiffel até se espatifarem no chão. Até os irmãos Lumière registraram uma operação de separação de siameses.

O Arquivo do Exército, o mais antigo da França, guarda horríveis imagens de loucos e mutilados de guerra, feitas por operadores sem escrúpulos. A partir de 1905, com a fundação dos grandes estúdios Pathé, os biógrafos clandestinos foram pouco a pouco controlados.


[1] BARNES, John. “Robert William Paul”, in HERBERT, Stephen; MCKERNAN, Luke (eds.). Who’s Who of Victorian Cinema: A Worldwide Survey. London: British Film Institute, 1996. Disponível em: http://www.victorian-cinema.net/paul.php.

[2] GORKI apud Vogue especial: 100 anos de cinema.

[3] HERBERT, Stephen; MCKERNAN, Luke (eds.). “Carl Hertz (Louis Morgenstein)”, in Who’s Who of Victorian Cinema: A Worldwide Survey. London: British Film Institute, 1996. Disponível em: http://www.victorian-cinema.net/hertz.

[4] Le juif errant (França, 1904, cor e p&b, mudo, c-m). On line: Europa Film Archives.

[5] CRUZ, Leonardo. No mundo fantástico de Méliès. 21 abr. 2008.

[6] IMDB. Georges Méliès Filmography. URL: http://www.imdb.com/name/nm0617588.